Publicado em: 04/11/23 às 15h
Eliel Paiva - Campinas SP
Psicanalista
Publicado em: 04/11/23 às 15h
A música transcende a ideia de mero entretenimento. Ela se revela como uma linguagem que vai além do domínio dos sentidos, desvendando camadas profundas da subjetividade, muitas vezes inatingíveis pelas palavras.
Como psicanalista e músico, meu interesse reside na exploração das possíveis conexões entre esses dois mundos aparentemente distintos.
Começando com Sigmund Freud, notamos que ele reconheceu a importância do som e do aspecto sonoro na expressão dos afetos humanos. No entanto, ao mesmo tempo, ele demonstrou certa relutância em mergulhar profundamente no universo da música e se confrontar com situações que desafiassem suas interpretações predominantemente centradas na palavra.
Um exemplo desse conflito pode ser encontrado em seu ensaio "O Moisés de Michelangelo" (Freud, 1914/1974), no qual ele discute sua relação com a arte em geral, incluindo a música.Freud escreve:
Eliel Paiva - Campinas SP
Psicanalista
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"Tenho observado que o assunto de uma obra de arte tem pra mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para o artista, o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. [...] Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta"
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com Eliel Paiva
Essa passagem de Freud aponta para a complexa relação entre a música e a psicanálise. Ela revela o desafio que a música apresenta, ao evocar respostas emocionais profundas que muitas vezes escapam à compreensão e à articulação consciente.
No entanto, essa mesma característica faz da música um terreno fértil para a exploração psicanalítica, uma vez que ela nos permite mergulhar nas profundezas do inconsciente, onde as palavras muitas vezes falham em descrever a riqueza da experiência humana.
O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), embora não tenha dedicado muita atenção à música, ofereceu uma abertura para o diálogo entre a psicanálise e a linguagem musical ao conceber a voz como um "objeto a" que transcende a mera comunicação.
Em sua teoria, a voz desempenha um papel significativo na constituição da subjetividade, indo além do mero ato de falar e ouvir. Lacan inclui a voz na série de objetos "a" primordiais, que representam os aspectos inassimiláveis, não simbolizáveis e indomáveis do psiquismo humano. A voz, nesse contexto, é vista como algo que comunica algo sobre o sujeito que ainda não é expresso através da linguagem falada. Ela se torna um veículo de expressão que escapa à clareza da palavra e mergulha nas profundezas da cadeia de significantes.
Lacan introduz o conceito de "pulsão invocante", que, de acordo com ele, está "mais próxima da experiência do inconsciente". A pulsão invocante refere-se à capacidade da voz de convocar e evocar emoções, desejos e impulsos que residem nas camadas mais profundas do sujeito. Ela opera além da racionalidade consciente e serve como uma janela para o mundo do inconsciente.Essa noção de pulsão invocante tem implicações fascinantes quando aplicada à linguagem da música.
A música experimental instrumental, embora amparada por um certo nível de teoria musical, através da melodia, do timbre e do ritmo, é capaz de evocar um amplo espectro de experiências emocionais, sem a necessidade de letras explícitas. Ela se torna um meio de comunicação que dialoga diretamente com os aspectos mais profundos da subjetividade, alinhando-se com a compreensão lacaniana da voz como um "objeto a" que transcende o simples ato de falar.
Nesse contexto, podemos explorar a música instrumental como um espaço onde a pulsão invocante da voz encontra sua expressão mais pura. Ela nos convida a pensar sobre como a música, desprovida de palavras, se torna um canal para a comunicação daquilo que é inexprimível e indomável na experiência humana.
Ao prosseguir nesta investigação, é possível traçar paralelos e contrastes entre a música e a psicanálise, explorando essa relação a partir do conceito de Real proposto por Lacan. como a música pode dar voz ao Real, de maneira análoga ao que Lacan identificou na experiência humana.
Nesse sentido, a música instrumental, em sua ausência de palavras, oferece um terreno particularmente fecundo para a análise dos aspectos mais profundos, inexprimíveis, ou seja, aquilo que escapa e não cessa de não se inscrever, a saber: O Real.
As obras de Hermeto Pascoal e Arismar do Espírito Santo, renomados músicos brasileiros, são referências notáveis da expressão para além das palavras. Eles representam uma tentativa corajosa de estabelecer uma relação diferenciada com a dimensão do Real.
Os sons e a música criados por esses artistas desafiam as limitações da linguagem, convidando os ouvintes a explorar territórios emocionais e psicológicos que muitas vezes permanecem ocultos. Em suas composições, é possível perceber uma expressão genuína da experiência humana, incluindo seus aspectos mais íntimos e enigmáticos. O 'Real' em Lacan representa o domínio da experiência que é inefável, inapreensível e muitas vezes intraduzível em palavras. É uma dimensão da existência que escapa à simbolização e à representação.
Em muitos aspectos, a música instrumental, como a encontrada nas obras de Hermeto Pascoal e Arismar do Espírito Santo, compartilha essa característica com o Real lacaniano. Ela transcende as limitações da linguagem, criando um espaço para a exploração direta e profunda da experiência humana.
"Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não escutei música para compor. Não. Eu me inspiro mais na pintura, no timbre de uma voz. (...) O cantar das pessoas, na minha concepção, o cantar de cada um de nós, é o que chamamos de fala. Assim como os pássaros, nós somos pássaros também."
Hermeto Pascoal em entrevista ao vivo com Luiz Carlos Saroldi. Programa Ao Vivo entre amigos, Rádio MEC, janeiro de 1997
“O que rege as mãos é a lua e o grave, do mundo, da vida, da barriga da mãe” (Arismar)
Portanto, a música instrumental, em sua riqueza e complexidade, oferece um campo fértil para a investigação e a compreensão dos aspectos mais profundos e inefáveis da psique humana, proporcionando um diálogo entre a linguagem musical e a linguagem da psicanálise, revelando assim as conexões entre a expressão artística e a experiência humana.
Arismar do Espirito Santo e Hermeto Pascoal na série BH Instrumental – crédito Élcio Paraíso_Bendita